A fotografia pode ser uma ferramenta poderosa de autoconhecimento de diferentes formas, seja por meio do que o mercado tem chamado de ensaios terapêuticos, seja por práticas de fotografia terapêutica. Parecem a mesma coisa, mas não são. Hoje vou abordar alguns aspectos da fotografia terapêutica, mas antes vou dar o meu relato de como eu vivenciei seu impacto.
Fotografar para não pirar
No dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde - OMS - declarou a COVID-19 como uma pandemia. Depois disso, lembramos bem dos momentos de medo diante do minúsculo inimigo, sobre o qual quase nada se sabia. Foram muitas perdas, muita dor e sofrimento. Diante da notícia, iniciava-se o isolamento social. Não podíamos nos encontrar com pessoas que morassem em outras casas, não podíamos abraçar quem amamos. Tivemos que aprender, ou ao menos explorar, novas formas de comunicação, aprendizado e trabalho. Os desafios foram enormes e de diferentes naturezas. E nesse contexto todo, como fica a saúde mental?
Diante da impossibilidade de sair de casa e de fotografar, diante do cancelamento dos contratos que havia fechado, tive meus momentos de choro, ansiedade e desespero, tive outros de criatividade e esperança.
Pouco antes da pandemia, havia fotografado uma família e quando fui entregar o álbum soube que o sogro da minha cliente, para quem ela daria o álbum de presente, havia falecido de covid. Pirei por um tempo com essa notícia. “Ana, suas fotos ganharam ainda mais valor pra gente. Você fez as últimas fotos da família com ele ainda vivo.” Esse depoimento ficava ressoando em minha cabeça.
Passei a ressignificar a minha relação com a fotografia. Acredito que ficou mais madura e profunda. Eu já sabia o tamanho da importância e da responsabilidade que é fotografar pessoas, já havia feito outras “últimas fotos”, mas dessa vez me bateu de forma diferente. Por mais que saibamos da finitude da nossa matéria, a pandemia veio nos esfregar na cara a efemeridade da vida. As memórias ganharam outro valor.
Com esse pano de fundo, resolvi então experimentar a minha própria medicina. Havia bastante tempo que eu desejava fotografar mais meu cotidiano, resolução de todos os inícios de ano de pelo menos uma década. Estávamos vivendo um momento histórico. Como não podia sair de casa, comecei a fotografar minha rotina, minha casa e aquilo que fazia parte dos meus dias. Senti a necessidade de deixar um rastro da minha existência.
Passei, então, a exercitar meu olhar diante da limitação do isolamento, trazendo os dois pilares da fotografia sobre os quais tanto falava: memória e expressão. O que eu falava na teoria e até experimentava daqui e dali, passei a viver na pele, dia após dia. Fotografava para contar minha própria história. Fotografava para expressar meus sentimentos.
Foi nessa prática que percebi uma conexão ainda mais próxima da fotografia com a psicologia. Fotografar com presença era como uma meditação que me exigia auto observação, além da observação do que me cercava. Na verdade, percebi que não bastava observar um objeto, planta ou qualquer outro tema de interesse. Eu observava também como aquilo me afetava. Passei a rastrear sentimentos e emoções que as cenas que fotografava ou as fotografias me despertavam.
O que estou sentindo? De onde vem essa sensação? O que ela tem a me dizer? Como posso expressar o que estou sentindo?
Ao buscar responder essas perguntas, percebi que ficava mais conectada com meu interior. As imagens me ajudavam a enxergar aquilo que racionalmente era muito difícil. Foi então que, sentindo na própria pele, me deparei com a dimensão da fotografia como ferramenta de autoconhecimento. Não apenas pela possibilidade de estudo sobre minha família ou sobre a minha história por meio de imagens, mas também pela observação atenta do que se passava internamente. Além disso, era uma forma de reduzir ansiedade e estresse ao me concentrar e me entreter com essa linguagem, ao passo que ao menos por alguns instantes eu tirava o foco das notícias, da política e de tudo o mais que me desequilibrava.
O impacto dessa vivência foi tão forte que criei um projeto chamado Fragmentos de Quarentena que incluía não apenas meu acervo, mas também um curso gratuito de fotografia com o celular.
Inconscientes que se encontram
Para conceber a fotografia como ferramenta terapêutica de autoconhecimento, é importante termos em mente que ela é um encontro de inconscientes. De um lado o inconsciente de quem fez a fotografia, do outro o de quem a vê. Isso sem falar no inconsciente coletivo, conceito de Carl Gustav Jung, que afeta todos nós.
Fazer uma fotografia envolve algumas escolhas, desde o tema, passando por uso da luz, enquadramento, ângulo, composição. Algumas dessas escolhas são conscientes, outras não. Assim, fotografias, ou aquilo que elas nos despertam, podem dizer muito sobre nosso mundo interior. Como uma técnica expressiva, muito utilizada na Arteterapia, a fotografia pode criar uma ponte de comunicação entre consciente e inconsciente.
Fiz uma experiência no meu Instagram recentemente. Postei três fotografias e pedi que as pessoas dissessem a primeira palavra que viesse à mente para cada uma delas. Veja só o resultado:
Tranquilidade Sertão Memória Curiosidade Passa Interesse Constância
Saudade Sinceridade Simplicidade
Infância Árvore Infância Curiosidade Raiz Saudade Vida Força
Força Angústia Proteção Aflição Liberdade Agonia Ar Agonia Voz
Aflição Medo Arte Angústia
A diversidade de palavras para uma mesma fotografia nos mostra como a presença de uma bagagem individual (também impactada pelo coletivo) interfere na forma como interpretamos ou sentimos uma imagem.
Afinal de contas, o que é fotografia terapêutica?
De acordo com Judy Weiser, psicóloga, Arteterapeuta e criadora da Fototerapia, a fotografia terapêutica consiste na prática de fotografias, sem condução profissional, com o intuito de produção de mudanças positivas em indivíduos, famílias e comunidades. A Fototerapia, por sua vez, é o uso de fotografias por terapeutas para ajudar a resolver conflitos emocionais, configurando assim um foco maior na terapia do que na fotografia.
A fotografia terapêutica não se limita ao ato de fotografar, mas também envolve a visualização, planejamento, discussão em torno de fotografias. Quando fotografamos com presença, nesse intuito de investigar sobre nós mesmos, além de uma prática de autoconhecimento, podemos melhorar nossa concentração, reduzir ansiedade e também desenvolver a criatividade e o olhar fotográfico.
Um outro efeito que senti na medida em que acumulava fotografias da quarentena se encaixa muito em uma fala da escritora Elisama Santos, no podcast Café com Cuscuz, em que ela disse que olhar para o passado nos traz esperança. As fotografias cumprem esse papel com louvor, tendo em vista que por meio delas nos recordamos das conquistas e desafios superados.
Do meu coração pro seu
Não sei se você já tem esse hábito, mas te sugiro não só fotografar seu cotidiano, mas também imprimir suas fotografias. Não precisa imprimir tudo. Faça uma seleção se preferir. Posso até te indicar o lugar onde eu imprimo minhas fotos e as das minhas clientes. Com fotografias impressas em mãos você pode armazená-las em uma caixa e manuseá-las de vez em quando. Sozinha, acompanhada, com as crianças ou em um almoço de domingo com a família. Faça essa experiência e depois me conte como foi. Você pode também montar um álbum manualmente, como fazíamos há alguns anos. Se for adepta de colagem, scrapbook e outras modalidades artísticas, prato cheio!
Outra sugestão é aliar a fotografia terapêutica com escrita. Você pode fazer isso digitalmente por meio da sua conta no Instagram ou em um blog, por exemplo, ou manualmente criando um diário com fotografias e textos. Para estimular essa escrita, permita-se conversar com a fotografia de maneira presente e atenta ao que ela te diz ou te provoca. Faça perguntas e deixe a escrita fluir sem julgamentos.
Apesar de toda essa potência da fotografia como ferramenta de autoconhecimento, é muito importante que você saiba que ela não substitui outras modalidades terapêuticas conduzidas por profissionais. Se você sentir necessidade de ir mais fundo, com alguém ao seu lado, procure um profissional de psicologia que utilize fotografias como ferramentas terapêuticas ou de arteterapia. E lembre-se sempre… se precisar de ajuda profissional, procure! Não deixe sua saúde mental pra depois.
Se ficou alguma dúvida ou curiosidade, por favor me escreva!